Mulheres brasileiras migram para países latinos para realizar o aborto legal. Privilégio de poucas, enquanto a prática de aborto inseguro ainda é uma das principais causas de mortalidade materna no país e no continente latino.
No início deste ano, a OMS e a Divisão de População do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU lançaram uma nova base de dados com leis, políticas e padrões de saúde do aborto em países de todo o mundo. O banco de dados visa promover uma maior transparência das leis e políticas de aborto, bem como melhorar a responsabilidade dos países pela proteção da saúde das mulheres e das meninas e também dos direitos humanos.
Dentre os 17 compromissos da ONU, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável relativo ao acesso universal à saúde sexual e reprodutiva (meta 3.7) prevê serviços para aborto seguro e legal como essencial para alcançá-lo. Além disso, a Organização Mundial de Saúde fornece orientações técnicas e normativas em nível mundial sobre o uso de contracepção para evitar gravidez não desejada, aborto seguro e tratamento de complicações por aborto não seguro.
Angela Freitas, coordenadora da Frente Contra a Criminalização das Mulheres pela Legalização do Aborto, avalia que, apesar das indicações mundiais sobre a legalização do aborto e uma necessidade reconhecida por órgãos de saúde e reivindicada por mulheres de todo mundo, há um retrocesso nos países latinos por conta da ascensão de grupos conservadores no poder. “Há um movimento organizado em diversos países de parlamentares ligados a religiões que têm legislado e dificultado o avanço da pauta pró aborto”, afirmou.
No Brasil, foram protocolados entre 2018 e 2019, 30 projetos de lei nas Casas Legislativas com o objetivo de restringir, dificultar ou impedir o acesso ao aborto que são legais. A Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família da atual legislatura reúne mais de 200 parlamentares que são claramente contra a legalização do aborto. A maior parte deles ligados a religiões de denominações distintas como evangélicos, católicos e espíritas.
Luciana avalia que, tanto no Brasil como em toda América Latina, há avanços e retrocessos desde a Primavera das Mulheres, em 2016. “O fato é que houve, desde a primavera feminista latina, uma maior conscientização das pautas e lutas das mulheres. E esse processo, no Brasil, chega ao ápice quando conseguimos a audiência pública no STF, na Argentina quando foi votada a legalização e por aí vai. Hoje as brasileiras, e as latinas de maneira geral, têm mais informação”, reflete e completa: “No entanto, no final de 2018, tivemos a ascensão de um governo e de centenas de parlamentares de extrema direita, que marcam um retrocesso nessa luta que estava avançando”. A audiência pública sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até a 12.ª semana de gestação fez um ano neste mês de agosto.
Segundo o ginecologista e vice-ministro da Saúde, Leonel Briozzo, a América Latina sofre influência de setores religiosos fundamentalistas e políticos da ala conservadora. Briozzo aponta como caminho importante a ser construído um espaço de diálogo. “É preciso unir forças até com setor mais moderado”, explica.
O caso de Rebeca Mendes Silva foi emblemático no Brasil para retratar a migração como busca do direito ao aborto. Em 2017, após enviar uma carta ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ter seu pedido negado, promovendo uma rede de mobilização para sustentar juridicamente sua defesa, Rebeca conseguiu realizar o procedimento na Colômbia com nove semanas de gestão, com apoio do Consórcio Latinoamericano contra o Aborto Inseguro (Clacai). No país onde realizou o procedimento é permitida a interrupção em casos que salvaguardam a saúde física e/ou mental da mulher, estupro e má formação do feto. O entendimento do país foi considerar legal por conta da preservação da saúde mental de Rebeca.
“Fiz parte de um coletivo de advogadas que atuou no caso para defendê-la mas, na época, a Ministra Rosa Weber negou com a argumentação de que ela não se encaixa em nenhum dos casos permitidos no Brasil. Por articulação e solidariedade, Rebeca pode ir à Colômbia onde as leis são menos rígidas, embora ainda não seja legal”, relembrou Boiteux.
Outra iniciativa muito esperada pelas mulheres latinas é a proposta da Ong Women on Waves, que desde 1999 proporciona a mulheres de todo o mundo abortos em alto mar em um navio-clínica. Quando embarcações estão em águas internacionais, são regidas pelas leis do país onde foram registradas. Na Holanda, o aborto é legal durante os três primeiros meses de gestação, para todas as mulheres que desejam fazê-lo. Portanto, este navio de origem holandesa realiza abortos em alto mar onde o procedimento não é permitido. A Women on Waves já atuou na Irlanda (2001), Polônia (2003), Portugal (2004), Espanha (2008) e em Marrocos (2012). Em 2008, a WoW chegou a planejar uma campanha no Brasil, mas a dificuldade na logística devido ao tamanho do País e a complicada situação legal impediram que os planos saíssem do papel.
No Brasil, a mobilização pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que questiona os artigos 124 e 126 do Código Penal, referentes à tipificação do aborto como crime contou com forte mobilização das mulheres de América Latina, em especial da Argentina e México. A ADPF ainda em tramitação defende que a proibição do aborto afronta preceitos fundamentais da Constituição Federal, como o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, à não-discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros. Na mesma época, as mulheres brasileiras foram às ruas para apoiar a onda verde Argentina, por conta da votação da legalização do aborto no país.
“A ADPF tem como objetivo ampliar a luta pelos direitos das mulheres para o judiciário porque o debate no parlamento estava muito limitado, ainda mais hoje com o Congresso que está posto. Um ano depois, após ser encaminhado para Procuradoria Geral da República, o caso está suspenso. Houve uma declaração do procurador José Antonio Dias Toffoli que disse que não iria pautar isso para não entrar em conflito entre o judiciário e o parlamento”, avaliou Luciana.
Em 28 de setembro, milhões de mulheres latinas e caribenhas irão às ruas lutar pela descriminalização do aborto. A luta pelos direitos reprodutivos e a solidariedade ainda há de ecoar por toda a América Latina.
*Maria é um nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.